A construção de uma comunidade pedagógica,
diálogo entre bell hooks (bh) e Ron Scapp (RS).
RS: Como professores, acho que ao longo dos anos nossa principal preocupação tem sido a de afirmar quem nós somos por meio da transação de estar com outras pessoas na sala de aula e realizar alguma coisa ali. Não simplesmente transmitir informação ou fazer declarações, mas trabalhar com as pessoas. (...) Tanto você quanto eu somos sensíveis – e talvez até desconfiados – diante daqueles que parecem fugir de uma consciência real, talvez radical, do corpo e se refugiam numa cisão entre mente e corpo muito conservadora. (...)
bh: Acho que um dos incômodos silenciosos que rodeiam o modo como um discurso sobre raça e gênero, classe social e prática sexual perturbou a academia [a escola] é exatamente o desafio a essa cisão entre mente e corpo. Quando começamos a falar em sala de aula sobre o corpo, sobre como vivemos no corpo, estamos automaticamente desafiando o modo como o poder se orquestrou nesse espaço institucionalizado em particular. A pessoa mais poderosa tem o privilégio de negar o próprio corpo. (...) Algumas pensadoras feministas – e as duas que me vêm à mente neste contexto são, curiosamente, as lacanianas Jane Gallop e Shoshana Felman – tentaram escrever sobre a presença do professor como corpo na sala de aula, a presença do professor como alguém que tem efeito total sobre o desenvolvimento do aluno, não somente um efeito intelectual, mas um efeito sobre como esse aluno percebe a realidade fora da sala de aula.
RS: Todas essas coisas pesam sobre os ombros de qualquer pessoa que leve a sério a história do corpo de conhecimento personificado no professor. Estávamos mencionando como, de certo modo, nosso trabalho leva nosso eu, nosso corpo, para dentro da sala de aula. A noção tradicional de estar em sala de aula é a de um professor atrás de uma escrivaninha ou em pé à frente da classe, imobilizado. Estranhamente, isso lembra o corpo de conhecimento firme e imóvel que integra a imutabilidade da própria verdade. (...)
bh: Nossa noção romântica do professor está amarrada a uma noção da mente transitiva, de uma mente que, em certo sentido, está sempre em conflito com o corpo. (...) A pedagogia libertadora realmente exige que o professor trabalhe na sala de aula, que trabalhe com os limites do corpo, trabalhe tanto com esses limites quanto através deles e contra eles: os professores talvez insistam em que não importa se você fica em pé atrás da tribuna ou da escrivaninha [ou da mesa, voltado para o quadro e não para a turma], mas isso importa sim. (...) Reconhecer que somos corpos na sala de aula foi importante para mim, especialmente no esforço para quebrar a noção do professor como uma mente onipotente, onisciente. (...)
RS: O aluno e o professor olham um para o outro. E quando nos aproximamos fisicamente, de repente o que digo não vem mais de trás dessa linha invisível, dessa muralha de demarcação que implica que tudo o que vem deste lado da escrivaninha é ouro, é a verdade, ou que tudo o que se diz fora de lá é algo que eu tenho de avaliar, que minha única reação possível é dizer ‘muito bem’, ‘correto’ e assim por diante. À medida que as pessoas se deslocam, se torna mais evidente que nós trabalhamos na sala de aula. (...)
bh: O arranjo corporal de que estamos falando desenfatiza a realidade de que os professores estão na sala de aula para dar algo de si para os alunos. O mascaramento do corpo nos encoraja a pensar que estamos ouvindo fatos neutros e objetivos, fatos que não dizem respeito à pessoa que partilha a informação. Somos convidados a transmitir informações como se elas não surgissem através dos corpos. Significativamente, aqueles entre nós que estão tentando criticar os preconceitos na sala de aula foram obrigados a voltar ao corpo para falar sobre si mesmos como sujeitos da história. Todos nós somos sujeitos da história. Temos de voltar a um estado de presença no corpo para desconstruir o modo como o poder tradicionalmente se orquestrou na sala de aula, negando subjetividade a alguns grupos e facultando-a a outros. Reconhecendo a subjetividade e os limites da identidade, rompemos essa objetificação tão necessária numa cultura de dominação. (...) Se os professores levam o corpo discente a sério e têm respeito por ele, são obrigados a reconhecer que estamos nos dirigindo a pessoas que fazem parte da história. (...)
bh: Habitamos instituições reais onde pouquíssimas coisas parecem ter mudado, onde há pouquíssimas mudanças no currículo, quase nenhuma mudança de paradigma, e onde o conhecimento e a informação continuam sendo apresentados da maneira convencionalmente aceita. (...)
RS e bh: Acho, por exemplo, que muitos alunos confundem a falta de formalidade tradicional reconhecível com uma falta de seriedade. (...) práticas de ensino em que se insiste que os alunos participem de sua educação e não sejam consumidores passivos. É bastante difícil comunicar isso aos alunos, pois muitos deles já estão convencidos de que não podem responder aos apelos para que participem na sala de aula. Já foram formados para se ver como desprovidos de autoridade, desprovidos de legitimidade. Reconhecer a responsabilidade dos alunos pelo processo de aprendizado é depositá-la onde, aos olhos deles próprios, ela é menos legítima. (...) Para educar para a liberdade, portanto, temos que desafiar e mudar o modo como todos pensam sobre os processos pedagógicos. Isso vale especialmente para os alunos. (...)
RS e bh: O prazer na sala de aula provoca medo. Se existe riso, pode ser que um intercâmbio recíproco esteja acontecendo. Você está rindo, os alunos estão rindo, alguém passa por ali, entra na sala e diz: ‘Tudo bem, você consegue fazê-los rir. Mas e daí? Qualquer um sabe contar uma piada.’ Tomam essa atitude porque a ideia de reciprocidade, de respeito, nunca é levada em conta. Ninguém parte do princípio de que as ideias do professor podem ser divertidas, comoventes. Para provar a seriedade acadêmica do professor, os alunos devem estar semimortos, silenciosos, adormecidos. Não podem estar animados, entusiasmados, fazendo comentários, querendo permanecer na sala de aula. (...) Ainda me lembro do entusiasmo que eu senti quando assisti à primeira aula em que o professor quis mudar nosso modo de sentar, em que em vez de sentar em fileiras nós fizéssemos um círculo onde podíamos olhar uns para os outros. Essa mudança nos obrigou a reconhecer a presença uns dos outros. Não podíamos avançar como sonâmbulos a caminho do conhecimento. (...)
bh: É muito importante chamar atenção para o hábito. É difícil mudar as estruturas existentes porque o hábito da repressão é a norma. A educação como prática da liberdade não tem a ver somente com um conhecimento libertador, mas também com uma prática libertadora na sala de aula. (...) Uma prática simples, como a de incluir a experiência pessoal, pode ser mais construtiva e desafiadora que o simples ato de mudar o currículo. (...) o ato de partilhar narrativas pessoais, ligando esse conhecimento à informação acadêmica, realmente aumenta nossa capacidade de conhecer. (...)
bh e RS: Um dos aspectos menos compreendidos dos meus escritos sobre pedagogia é a ênfase na voz. Achar a própria voz não é somente o ato de contar as próprias experiências. É usar estrategicamente esse ato de contar – achar a própria voz para também poder falar livremente sobre outros assuntos. (...) [Apostamos] numa pedagogia que busca constantemente afirmar o valor das vozes dos alunos. (...) No que se refere às práticas pedagógicas, temos de intervir para alterar a estrutura pedagógica existente e ensinar os alunos a escutar, a ouvir uns aos outros. Por isso uma das responsabilidades do professor é criar um ambiente onde os alunos aprendam que, além de falar, é importante ouvir os outros com respeito. (...) Em princípio, a sala de aula deve ser um lugar onde as coisas são ditas a sério – não sem prazer, não sem alegria – mas a sério e para serem levadas a sério. (...)
RS e bh: Com demasiada freqüência se supõe que se você ‘der liberdade aos alunos’ – e é um erro pensar que estamos falando de dar liberdade aos alunos, pois a liberdade, na verdade, é um projeto para o qual professores e alunos trabalham juntos – haverá caos e nenhuma discussão séria acontecerá. É essa a diferença da educação como prática da liberdade. O pressuposto inicial tem de ser o de que todos na classe ao capazes de agir com responsabilidade. Esse tem de ser o ponto de partida – de que somos capazes de agir juntos com responsabilidade para criar um ambiente de aprendizado. O poder da sala de aula libertadora é, na verdade, o poder do processo de aprendizado, o trabalho que fazemos para criar uma comunidade. [p.180- 205 – trechos selecionados do diálogo entre bell hooks (educadora, docente) e Ron Scapp (filósofo, docente)].
[cap. 10 (p.173-p.222) do livro: HOOKS, bell. Ensinando a transgredir – a educação como prática da liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017. 2ª edição.].Querida/o estudante,
compartilho com vocês aqui algumas reflexões. Por que escolhi esse texto para iniciarmos nossas provocações filosóficas? Por que elegi essa para ser a primeira postagem na nossa comunidade artístico-pedagógico-filosófica? Eu poderia dizer que os títulos são auto-explicativos, afinal trata-se de um blog filosófico Narrativas de si, tessituras da comunidade e de um texto intitulado A construção de uma comunidade pedagógica. Mas, imbuída de atitude filosófica, gostaria de provocar um pouquinho mais, de espremer essas duas referências para ver o caldo que dá...
Trata-se de um blog artístico-pedagógico-filosófico, uma vez que este pretende constituir-se como espaço de compartilhamento, troca, diálogo, experiências, aprendizagens e ensinamentos mútuos nesse campo híbrido de filosofias, linguagens artísticas e trocas ensinantes. Assim, é pedagógico porque queremos que se constitua como um espaço de trocas significativas; é filosófico porque somos uma equipe de professoras-filósofas que objetiva estimular a atitude filosófica que é possível ter sobre a vida, o mundo, o tempo presente, sobre nós mesmas/os; e é artística porque acreditamos que sem arte não viveríamos (e essa pandemia, com o forçoso isolamento social, tirou qualquer dúvida sobre isso, não é mesmo? Sem os filmes, os livros, as séries, as músicas, aquela cantoria no banheiro e uma e outra dancinha, mesmo às escondidas: como sobreviveríamos a esse ano difícil?). Nós, professras que compomos a equipe de filosofia do campus Tijuca II, desejamos criar com vocês um blog que, sem pretender substituir o espaço vital de troca, convivência e aprendizado que entendemos ser a escola, neste momento enfrenta o desafio de fazer desse espaço virtual um espaço de criação e alimentação da nossa comunidade.
A filósofa Hannah Arendt, em seu texto A crise na educação, afirma que momentos de crise, como o que estamos vivendo, são propícios para mudanças, transformações, alteração de padrões. Se por um lado vivemos sob o sistema de produção capitalista que produz suas próprias crises e necessita delas para se retroalimentar, por outro lado é inegável a profunda crise que vivemos nesse momento, em que um colapso sanitário agudo evidenciou as fragilidades e impossibilidades da engrenagem na qual vivemos, evidenciando uma séria crise no modo de viver, produzir, ensinar e aprender, até no modo de ser. Nessa esteira, impulsionadas por esse momento que estamos vivendo que, por si só, já nos provoca reflexões críticas e autocríticas, queremos aproveitar essa oportunidade para pensar também sobre a vida e a escola, sobre cada um/a e o coletivo da comunidade que constituímos no espaço escolar, na sala de aula, sobre a convivência nesse espaço, sobre a tessitura das comunidades pedagógicas nas quais atuamos, que nos dão sustentação e que, com a nossa atuação, também sustentamos.
Assim, convidamos para iniciar essa nossa reflexão dialógica compartilhada que, desejamos, seja também repleta de referências artísticas, a intelectual e professora bell hooks, nesse texto que seleciona passagens do diálogo entre ela e o também professor, Ron Scapp. Mas para nós é muito importante escutar vocês, é essencial que vocês leiam o texto e ocupem esse espaço que é nosso, é de todes e de cada um/a de vocês! Quem é você e como você está nessa quarentena? Como está sua rotina, como você tem organizado e vivenciado seu tempo? Como está seu corpo? Você tem se exercitado? O que você tem comido? E cozinhado? O que esse texto mobilizou em você? Em que ele te afetou? O que te dá saudade da escola? O que seu corpo sente alívio por não ter que vivenciar na rotina da escola?
O trabalho que faremos remotamente nesse
blog da filosofia não seguirá divisão por série, pois queremos uma maior
interação nessa grande comunidade que é o ensino médio do campus Tijuca II,
incluindo todas as modalidades: regular, integrado e proeja. Você que está
chegando agora na escola, seja bem-vinda/o! Como pensa a experiência educativa,
o que espera da escola? Você estudante que já está no campus, mas acabou de
chegar no ensino médio, que mudanças você deseja encontrar? Você que é estudante
veterana/o, o que tem a dizer sobre a sua experiência pessoal nesse espaço e
sobre a escola, as relações e os processos de ensino-aprendizagem? O que é
necessário para construirmos uma comunidade pedagógica? E para construirmos
essa comunidade virtualmente? O que cada um/a de vocês pode transformar em si
mesmo/a e contribuir para a transformação da escola a fim de que ela seja um
espaço de referência no acolhimento e na produção de conhecimento? Você aceita o convite para compartilhar conosco um pouco de si?
Estamos aqui
com nossa escuta respeitosa e acolhedora para receber os comentários e as narrativas de vocês. Ocupe seu espaço. Aproprie-se
de sua voz e de sua escrita!
professora Joana Tolentino
Essa música é um presente que, pensei, se encaixar bem, pois ela se chama Sol de primavera e já começa assim: "Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos". Já estamos quase em outubro, mas a boa nova, ainda em setembro, é essa: que estaremos "juntos outra vez", ainda que separados fisicamente, sob o sol da primavera. Considero essa letra muito sábia e potente e tendo a concordar com ela quando diz que a lição sabemos de cor, só nos resta aprender"... Ressaltando o quanto "quero ver crescer nossa voz no que faltar sonhar", para tecermos juntas/os teias de apoio, feitas dos sonhos que a gente quiser sonhar.
Sol de Primavera - de Beto Guedes
E a boa nova andar nos campos
Quero ver brotar o perdão
Onde a gente plantou juntos outra vez
Semeando as canções no vento
Quero ver crescer nossa voz
No que falta sonhar
Muitos se perderam no caminho
Mesmo assim não custa inventar
Uma nova canção
Que venha nos trazer sol de primavera
Só nos resta aprender
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