sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A Sociedade do Cansaço


CHAPLIN, Charlie. Tempos Modernos.Disponível em: https://youtu.be/HAPilyrEzC4. Acesso em: 20.out.2020.


A Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han (fragmentos).

A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos. Nesse sentido, aqueles muros das instituições disciplinares, que delimitam os espaços entre o normal e o anormal, se tornaram arcaicos. A analítica do poder de Foucault não pode descrever as modificações psíquicas e topológicas que se realizaram com a mudança da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. Também aquele conceito da “sociedade de controle” não dá mais conta de explicar aquela mudança. Ele contém sempre ainda muita negatividade. A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-o-direito. Também ao dever inere uma negatividade, a negatividade da coerção. A sociedade de desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. Justamente a desregulamentação crescente vai abolindo-a. O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação "Yes, we can" expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. (pág.14-15)

O excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção. Também a crescente sobrecarga de trabalho torna necessária uma técnica específica relacionada ao tempo e à atenção, que tem efeitos novamente na estrutura da atenção. A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção, indispensável para sobreviver na vida selvagem. Um animal ocupado no exercício da mastigação de sua comida tem de ocupar-se ao mesmo tempo também com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido. Ao mesmo tempo tem de vigiar sua prole e manter o olho em seu(sua) parceiro(a). Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si. Não apenas a multitarefa, mas também atividades como jogos de computador geram uma atenção ampla, mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem. As mais recentes evoluções sociais e a mudança de estrutura da atenção aproximam cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem. Entrementes, o assédio moral, por exemplo, alcança uma desproporção pandêmica. A preocupação pelo bem viver, à qual faz parte também uma convivência bem-sucedida, cede lugar cada vez mais à preocupação por sobreviver. (pág. 18-19)

HAN, Byung-Chul: Sociedade do cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada — Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. (pág. 14-15; 18-19).

 

Seriamos nós humanos ou máquinas? Qual o motivo de sermos tão produtivos? Será que não deveríamos parar um pouco e descansar, relaxar, meditar?

A sociedade do desempenho apresentada pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, vive em um constante excesso de positividade. Por que essa positividade poderia ser entendida como ruim? Porque através do incentivo para que as pessoas apenas produzam, surgem os efeitos devastadores na psique humana, como, por exemplo, a ansiedade e a depressão. Citando textualmente a obra Humano, Demasiado Humano, de Nietzsche (2000, pág. 117), Byung-Chul Han lembra que “por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto”.

Nesse período de quarentena, a auto-exploração se faz muito presente, pois as inquietações aparecem e a vontade/obrigação de realizar várias tarefas ao mesmo tempo também. A sociedade atual tem substituído a atenção profunda por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades. Desde cedo as crianças são submetidas, além do horário escolar que contém uma super produtividade, a frequentar cursos de artes, esportes, idiomas, etc. Há casos em que indivíduos se alimentam e trocam mensagens ao mesmo tempo, entre muitos outros exemplos que mostram as multitarefas que desempenhamos na atualidade. Ademais, a multitarefa implica para o indivíduo pouco tempo para o tédio. Paul Cézanne, pintor francês considerado por Chul Han mestre da atenção profunda, contemplativa, observou certa vez que com uma observação atenta podia ver inclusive o perfume das coisas. Essa visualização do perfume exige uma atenção focada e profunda. Ao observar uma pintura, por exemplo, nosso olhar não captura de imediato as potencialidades que a arte pode expressar, pode despertar em nós, pois atualmente contemos um olhar desprovido de atenção. Afinal, de acordo com Byung-Chul Han, só a atenção profunda, que interliga a “instabilidade dos olhos”, gera o recolhimento. Sem esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de cá para lá e não permite que nada se manifeste. Segundo o autor, a atenção profunda, contemplativa é indispensável para os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia.

 

SÍNTESE DAS ANTÍTESES – Lao Tsé[1]

(...)

Só temos que fazer o belo

Quando conhecemos o feio.

Só temos consciência do bom

Quando conhecemos o mau.

Porquanto o Ser e o Existir

Se engendram mutuamente.

O fácil e o difícil se completam.

O grande e o pequeno são complementares.

O alto e o baixo formam um todo.

O som e o silêncio formam uma harmonia.

O passado e o futuro geram o tempo.

Eis por que o sábio era

Pelo não-agir.

E ensina sem falar.

Aceita tudo que lhe acontece.

Produz tudo e não fica com nada.

O sábio tudo realiza - e nada considera seu.

Tudo faz - e não se apega à sua obra.

Não se prende aos frutos da sua atividade.

Termina a sua obra

E está sempre no princípio.

E por isto a sua obra prospera.

(....)

No poema Síntese das Antíteses, o pensador Lao-Tsé nos ensina que os diferentes se completam, juntos eles seriam o equilíbrio dinâmico e a harmonia cósmica. O tédio profundo, como o contrário da produtividade, torna-se a harmonia cósmica indispensável a todo equilíbrio dinâmico. Nós precisamos de descanso. Não somos obrigados a sempre estar lendo ou aprendendo um novo idioma, por exemplo. O autor diz que não toleramos o tédio profundo, o que se assemelharia ao que Walter Benjamin chamou de “pássaro onírico, que choca o ovo da experiência”. Ele conta que Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de repouso do pássaro onírico esteja desaparecendo cada vez mais na contemporaneidade. Para Han, se o sono perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual. Ele diz que o tédio seria um pano cinza quente, forrado por dentro com o mais incandescente e o mais colorido revestimento de seda que já existiu e no qual nos enrolamos quando sonhamos. Nos arabescos de seu revestimento estaríamos em casa.

Viver bem estaria associado a saber trabalhar com o novo, mantendo a observação, exercendo a atenção profunda e a vida contemplativa; descansando espiritualmente de pensamentos repetitivos e produtivos, como postagens em redes sociais, jogos virtuais ou séries, que se repetem capturando nossa atenção. O autor aponta que é preciso que a humanidade fortaleça em grande medida o elemento contemplativo, pois só a vida contemplativa pressupõe uma pedagogia específica do ver, ou seja, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento. Como aponta Nietzsche no seu livro Crepúsculo dos Ídolos (2005, pág. 51), aprender a ver significa “habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si”, com vistas a estimular os modos de ver com uma atenção profunda e cuidadosa.

Questões:

O texto de Byung-Chul Han e o poema de Lao Tsé dialogam com a sua rotina? Nesse período de pandemia e isolamento social, como você identifica que a sua rotina foi alterada? Você tem conseguido “contemplar o tédio”, como propõe Chul Han? O seu corpo e a sua mente têm obtido descanso? Em sua perspectiva, como tem sido conciliar a vivência em casa com a ausência do período escolar nessa quarentena? Sinta-se à vontade para nos contar sobre o que lhe traz descanso e tranquilidade no dia a dia e como tem sido a organização da sua rotina nesse período excepcional de nossas vidas. 

 

por Lizandra Vitória de Oliveira Martins

 

 



[1]TSÉ, Lao. Tao Te Ching, o livro que revela Deus. In: Relação de Obras do Professor Huberto Rohden, (pág.16) Disponível em: https://www.academia.edu/34185700/TAO_TE_CHING_O_LIVRO_QUE_REVELA_DEUS . Acesso em: 15.nov.2020.